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A cerca de meia dúzia de metros da entrada para o parque de estacionamento de um centro comercial do centro da cidade, um carro topo de gama assenta arraiais em cima de um traço amarelo, um jeep de alta cilindrada pratica escalada desportiva no passeio e uma carrinha monovolume instala-se estrategicamente numa curva, impedindo a visibilidade. Depois de esgotadas todas as possibilidades de transgressão, ainda restava a 2ª fila e foi mesmo isso que aconteceu com um utilitário muito desenrascado. A tudo isto assisto na fila para entrar no parque de vários pisos onde não faltam lugares, enquanto os condutores destas viaturas, indiferentes aos sinais de proibição, se dirigem sem pressas para o centro comercial. Mais tarde haveria de me cruzar com a condutora do jeep acompanhada dos filhos num dos corredores da área de informática e com o tripulante do topo de gama (cujo rosto reconheci) a tomar calmamente o seu café num dos bares do edifício.
Sei bem que são muitos anos de maus hábitos, vícios tramados de vencer, num país com uma diminuta cidadania participativa, demasiada permissividade social para com estes comportamentos, sempre a contar com a morosidade da justiça, com a inércia da polícia ou com as vindas do Papa. Escrevo de Lisboa, onde diversas gerações nunca viram a cidade sem carros nos passeios, mas infelizmente o problema encontra-se um pouco por todo o lado. Corremos o risco que seja considerado normal que em certas zonas (não falo de zonas históricas ou outras de impossível intervenção) dois peões mal consigam circular lado a lado, que os semáforos raramente estejam temporizados em função de quem se desloca a pé e que os passeios se encontrem atafulhados de carros, sinais de trânsito mal colocados, caixas de electricidade ou excesso de publicidade. E avaliar pelo exemplo acima, convenhamos que o exemplo dos pais em pouco abona a favor de uma pacífica e agradável convivência urbana entre quem circula no espaço público. Entretanto, chegamos encantados de Amesterdão, Estocolmo e Viena, onde um sinal de proibição de estacionamento não é uma ficção e onde os passeios são território livre de dejectos de animais (pelo menos por onde tenho andado).
Nada disto está certo para quem, devido a problemas físicos ou algum tipo de deficiência, vê reduzida a sua capacidade de se deslocar. Que cidade esta onde tanta gente tem lata para deixar as latas onde devem circular as pessoas. Constrangida com o enorme número de obstáculos, expressei a minha indignação a uma amiga cega, que aliás tem uma autonomia incrível. Ela riu-se e respondeu-me que consegue andar, mas à custa de muitas nódoas negras nas pernas. Há muito tempo que não sentia tamanha vergonha.
Por estas e por outras é que quem está mal, muda (*) e fico satisfeita por saber que ainda há gente que anda por aí à procura de moinhos de vento com uma lanterna acesa durante o dia.
E como o 25 de Abril é quando o homem quiser, até que cada co-peão veja reconhecido seu direito a um metro de passeio, a Luta Continua!(*)
Art. 14: É proibido a um automóvel estacionar a menos de dois milímetros de uma porta ou portão
Art. 37: É proibido ao peão que se desloca no passeio subir para cima de um automóvel estacionado a 2 milímetros de uma porta ou portão.
Art. 76: O peão ligeiro deve recolher os ombros ao cruzar-se com um pesado.
(*) “Sinais do Trânsito” – Manuel João Ramos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
miss pearls (aka Isabel Goulão)