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Mais um artigo sobre o Iraque. Depois de lê-lo e relê-lo, fico com a seguinte ideia: Rui Ramos não só acha que não era "óbvio", em 2003, que a invasão do Iraque fosse um erro; como continua a achar que não é "óbvio", em 2007, que a invasão tenha sido um erro.

Analisemos estas duas considerações de forma separada:

Consideração 1 – em 2003, não era óbvio que a invasão fosse um erro.

Se entendermos “óbvio” como “aquilo que é evidente para tudo e para todos”, é claro que, em 2003, não era absolutamente óbvio que a invasão do Iraque fosse uma asneira.

Como diz o Rui Ramos, invadir ou não invadir o Iraque foi uma decisão controversa. Logo, como em qualquer decisão controversa, o que foi óbvio para uns não foi óbvio para outros. Digamos, pois, que em 2003 não havia uma unanimidade, ou sequer um consenso alargado sobre o que era “óbvio”. Enquanto para uns – como Rui Ramos – parecia evidente que a invasão seria a melhor solução, para outros era claro que a invasão seria uma má ou uma não solução. Pode então dizer-se que, em 2003, à força de existirem vários “óbvios”, nada parecia ser óbvio. Em qualquer caso, seria simpático reconhecer que já nessa altura havia quem achasse que a invasão iria (obviamente) acabar mal, pelas razões por que, aliás, veio a acabar.

Consideração 2 – em 2007, continua a não ser óbvio que a invasão do Iraque tenha sido um erro.

Da mesma forma, se se entender o conceito de “óbvio” como “algo que é incontestável por todos em toda a parte e em qualquer momento”, continua a poder dizer-se, em 2007, que a invasão do Iraque não foi um erro. O Irão, por exemplo, acha-a acertadíssima; os xiitas do Iraque também; e o mesmo se diga de alguns bloggers domésticos, notáveis na defesa de causas absurdas, e que assim podem continuar a sua absurda notabilidade. O que me espanta é ver Rui Ramos embarcar nesta cantiga. Não há nada mais maçador que assistir a pessoas que admiramos intelectualmente no penoso papel de negar o óbvio. Para mais, com argumentos como os que se seguem:

"Em 2003, Saddam não dispunha de “armas de destruição maciça”. Mas não podia consentir que isso fosse provado pelos inspectores da ONU, porque precisava de parecer que as tinha. Com o colapso inevitável do regime de contenção, tê-las-ia fatalmente adquirido..."

"... Sem a invasão de 2003, Saddam seria hoje, não o mártir dos sunitas iraquianos, mas um grande líder que desafiara impunemente os EUA, pronto talvez para novas aventuras de grandeza..."

Primeiro, usando como argumento a História que não aconteceu (“... tê-las-ia fatalmente adquirido”), terreno onde tudo é consentido e onde, por definição, nada é verificável. Como se sabe, o “se” é o melhor ponto de partida para a especulação. Há óptimos romances, novelas e contos feitos na base do “Se” (Philip K. Dick, Philip Roth, etc.). Mas é bom não esquecer que são apenas romances, novelas e contos, e não argumentos a que se recorre numa discussão que se quer séria. O argumento-chave usado em 2003 para defender a invasão foi um argumento real, e não hipotético. Foi o da existência concreta, corpórea e actual de armas de destruição massiva no Iraque. E não o da mera hipótese abstracta de num qualquer futuro aí poderem vir a existir. Claro que é legítimo conjecturar que, não havendo invasão, o Iraque pudesse um dia adquirir ADM; como é admissível equacionar que, passada a invasão, o Iraque venha um dia a adquirir ADM; como é ainda possível vaticinar que um dia destes vários outros países venham a adquirir ADM. Tudo isto é obviamente legítimo, possível e admissível. Sucede que pouco ou nada disto interessa para a discussão em causa. Para esta discussão – a de saber se a “invasão” foi ou não melhor que “a não invasão” – interessa sim que, na altura em que a guerra começou, naqueles dias concretos de 2003, não existiam no Iraque quaisquer ADM. Em nome dos mínimos olímpicos de coerência, seria bom que todos aqueles que fundamentaram a invasão nas ADM reconhecessem agora a inexistência do fundamento invocado, em vez de atirar com as cartas ao ar para obrigar a baralhar de novo.

Depois – sempre no campo da especulação – conta-nos Rui Ramos que, não fosse a invasão de 2003, e Saddam seria hoje o grande líder que desafiara impunemente os EUA, quando – e agora já no campo da realidade – foi precisamente após a invasão, e por causa desta e do que se lhe seguiu, que a sensção de impunidade aumentou nos países hostis aos EUA. Pode não ser óbvio para 100% da humanidade, mas se há algo hoje sobejamente consensual na América (incluindo no Partido Republicano), é que a invasão do Iraque e a incapacidade (por muitos prevista) de gerir o que a seguir se passou diminuíram, e muito, o capital de influência político-militar dos EUA no Médio Oriente. Sem que, no meio disso tudo, se tivesse melhorado o que quer que fosse no Médio Oriente.

Alargando a conversa, é extraordinária a tendência que algumas pessoas têm para tentar subverter e usar a seu favor argumentos que lhes são objectivamente desfavoráveis. O fenómeno é caricato e apenas me interessa porque acho alguma graça à análise da lógica formal das discussões. A diz que X é necessário porque Y existe. Anos depois, provando-se que Y não existia, A diz que X ainda assim foi necessário porque Y poderia, quiçá, um dia vir a existir... e por aí fora, até se concluir que nada é óbvio.

Para estes agitadores da lógica, não há lições a tirar da invasão do Iraque. Quando os fundamentos que usaram para sustentar a sua tese caem por terra, quando a (sua) história lhes sai contrária às previsões, refugiam-se no relativismo opinativo, invocam todo o tipo de cenários hipotéticos, discutem à margem de qualquer coerência formal e substancial, e acabam a recitar o paradoxo hegeliano, afirmando que a única coisa que se pode aprender com a História é que não há nada para aprender com a História ou, por palavras mais modestas, que uma das poucas coisas óbvias no mundo é que quase nada é “óbvio”. Contra isto, de facto, não há argumentos.


lavagem de mãos e outras medidas profiláticas

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De Tiago Mendes a 18.01.2007 às 02:35

O texto está muito bom, como é habitual do Eduardo sobre estes assuntos. Anoto apenas duas coisas, meramente formais, relativamente ao seguinte excerto:

"Para esta discussão – a de saber se a “invasão” foi ou não melhor que “a não invasão” – interessa sim que, na altura em que a guerra começou, naqueles dias concretos de 2003, não existiam no Iraque quaisquer ADM."

Primeira coisa: em rigor, nunca se pode provar, em termos empíricos - que são os que se aplicam a este caso - a "inexistência" de algo. Pode-se tentar provar não existência de certas coisas por via teórica, mas não apelando a "factos". Dizer que não existiam, em 2003, ou hoje, com 100% de probabilidade, ADM no Iraque é, em termos formais, errado. Sendo que o texto é irrepreensível em termos de lógica argumentativa (exceptuando estes apontamentos) e que ele inclui um elogio a ela mesma, segue-se que este comentário, no contexto, será tudo menos "pedante".

Segunda coisa: para a avaliação de decisões tomadas no passado, em posse de informação diversa da que se tem no presente, importa considerar a informação tida na altura e não agora. Ou seja, mesmo que hoje pudéssemos (não podemos) ter a certeza de que não haviam ADM no Iraque em 2003, o que importa é saber se a decisão de avançar era ou não a mais adequada, face à informação então disponível na altura - basicamente, uma avaliação probabilística dos vários cenários possíveis - e não a informação que hoje temos. Este é um dos erros mais comuns que se comete na argumentação. Claro que o Eduardo pode achar que era "óbvio" que elas não existiam em 2003 e que, portanto, a informação disponível na altura era a mesma de hoje - Bush e os seus compagnons de route é que eram ignorantes. É possível.

Quanto ao conteúdo, subscrevo as ideias defendidas. Aliás, acho assinalável que de repente a ala "falconiana" (uso o termo apenas porque me parece que quem nela se enquadra gostaria de assim ser rotulado, dado o seu amor pelas simplificações, pelo "É guerra! É guerra", a militância reactiva anti-anti-Bush e outras coisas que tais) da Opinião publicada em Portugal tenha (assinale-se a coerência de Pacheco Pereira) mudado "ligeiramente" de opinião face ao Iraque.

A postura relativamente acrítica, nesta e noutras questões, no que concerne a temas de extrema complexidade, parece revelar um curioso paradoxo: é que, afinal de contas, a disposição conservadora que se apregoa é bem maior que a natureza céptica e o olhar crítico que ela pediria. Não dá nada mais curioso que a infalibilidade intelectual e moral apregoada por quase todos os que apoiaram, com gritos de guerra, Bush na sua aventura no Iraque.

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