por Alexandre Borges, em 30.01.07
Se as vulgares férias de verão nos compelem a reflectir sobre o corpo que temos, as de inverno obrigam a análise interna (que tal vai esta alma? se se define em abdominais sólidos ou chocalha de muito pouco estéticas dúvidas? quantas cicatrizes? que somos ainda a mais ou a menos que elas?), uma espécie de praia à beira de nós, no interior dos silêncios da época baixa. Regressados, trazemos excesso de bagagem: a morte de Fiama e a certeza rigorosa disso nos importar mais, muito mais, que as discussões em torno do aborto. E, no entanto, sabemos que também teremos de o discutir, que uma-coisa-não-tem-nada-a-ver-com-a-outra-como-diabo-podia-ter. Mas, primeiro, é preciso que nos demoremos um pouco por aqui. Fiama. O nome estranho com que nos acenaram os amigos avisados, anos atrás, por altura das primeiras desventuras (e a palavra não é, aqui, hábito de linguagem) literárias, pouco mais que adolescentes. A grande lição sobre poesia que qualquer mestre nos poderia dar, a nós, cheios do que papagueávamos em versos borbulhentos e pretensiosos. "'Três Rostos', para começar", disseram-nos então esses amigos, mas o subtexto era outro: "Aprende". E vieram os 'Três Rostos' e a 'Área Branca', 'Homenagemàliteratura', a versão do 'Cântico Dos Cânticos', as 'Cenas Vivas', anos mais tarde, o tardio romance 'Sob O Olhar De Medeia', por aí afora. Há muitos anos que, por aqui, aqui dentro, Fiama passou de estranho a nome mais suave e familiar que os dos outros a quem conhecia muito mais que algumas fotografias, com quarenta anos, numa praia qualquer. E continua a não apetecer falar de aborto nenhum, ainda que nos tenhamos de obrigar a isso depois. A morte de Fiama é que me preocupa. E deveria ter sido referendada. Mas o resto do mundo não estava em férias de inverno como nós, e ficou a discutir o que era realmente importante, não o que era realmente importante.