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vamos lá esclarecer uns pontos

por Jacinto Bettencourt, em 06.02.07

caro Tiago Geraldo.

Em primeiro lugar, a pergunta colocada a referendo é uma pergunta complexa, que implica diversas respostas. Apenas uma parte do «sim» se mantém fiel à tese de que o problema é só um, e que portanto apenas existe uma resposta.

Como tal, em caso de vitória do «não», podem naturalmente verificar-se alterações legislativas, nunca no sentido de total liberalização do aborto até às 10 semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, mas, por exemplo, no que se refere ao  elenco das causas de exclusão de ilicitude. Só alguém muito tonto, e muito teimoso, acredita em respostas únicas.

Um certo «sim» entende o contrário. Perante essa posição apenas podemos concluir que nunca, enquanto o mundo for mundo, será possível sem um golpe de estado ou uma nova constituição, alterar a actual lei. Essa conclusão, para além de manifestamente absurda, é falsa. Nenhuma lei é imutável, nem formal nem materialmente.

É sempre possível, com efeito, descriminalizar o aborto praticado em inúmeras situações, sem que o Estado emita, ou dê cobertura, a um juízo ético favorável, ou de aprovação, ao fenómeno. O consumo de drogas leves, por exemplo, é ainda hoje ilícito, porém não sujeito a pena privativa de liberdade.  Só não reconhece a existência de alternativa quem pretende ver consagrado um verdadeiro direito ao aborto, a ser exercido livremente e com a frequência que o titular bem entende, em vez de resolver dois problemas complexos: um ético e outro de saúde pública.

Em segundo lugar, a «temporalmente oportunista,  desonesta e tecnicamente impraticável solução proposta pelo Não», não só tem, na sua formulação inicial, cerca de 8 anos, como foi renovada há quatro anos em plena Assembleia da República, sem que ninguém nos jornais ou na comunicação social se tenha lembrado de dizer isso ao país. No «sim» vejo muita gente distraída com pormenores demasiado relevantes...

Claro está que, se as redacções não estivessem povoadas de jornalistas "isentos" como a menina Câncio, há muito teríamos discutido este assunto e procurado encontrar soluções e equilíbrios tecnicamente viáveis. Embora todos saibamos que, com uma solução a esse nível, o aborto não estaria hoje em cima da mesa nos termos em que certos sectores o conseguiram colocar  uma vez mais - ou seja, e repito, como direito e não como problema de saúde pública. E isso deixaria muito gente irritada.


lavagem de mãos e outras medidas profiláticas

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De Tiago Geraldo a 06.02.2007 às 22:13

Eu digo Sim à despenalização e à legalização. A «total liberalização» de que falas, para além de tautológica, é um evidente abuso semântico.
Dizes que nenhuma lei é imutável. De acordo. Mas pergunto: qual é então a eficácia de um referendo (vinculativo)?
Imagina que o PS aprovava com os votos do PC e do BE a inclusão de uma alínea no CP que despenalizasse o aborto nos mesmos termos da pergunta que é sujeita a referendo. Seria politicamente legítimo (para nem falar da «legitimidade» jurídica)?
Ainda que fosse favorável a que a despenalização tivesse sido votada na Assembleia antes de 98, a convocação do referendo neste momento parece-me absolutamente necessária para mudar a lei.
Os ataques ao «verdadeiro direito ao aborto» não me fazem espécie alguma. Não compreendo que o aborto possa ser despenalizado sem ser legalizado. O toque de caixa neste referendo está em dois problemas: desadequação da tutela penal e saúde das mulheres que abortam.
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De Jacinto Bettencourt a 07.02.2007 às 11:29

Caro Tiago,

mas claro que não é um abuso semântico. Vamos por partes.

Em primeiro lugar, existe uma diferença entre descriminalizar e despenalizar. Um facto pode constituir crime, e não ter pena. É raro na generalidade dos ordenamentos, mas parece ser, de certa forma, o pão nosso de cada dia, por exemplo, no Direito Internacional Público...

Em segundo lugar, existe uma diferença entre despenalizar e tornar livre. Algo pode deixar de ter uma pena privativa de liberdade, e continuar a ser proibido. Exemplos: o consumo e detenção de drogas leves. Não chega? Pensemos num exemplo académico: o adultério. Já não tem assento no Código Penal há muito tempo, mas não deixe de constituir um ilícito - o outro cônjuge pode, com fundamento nesse ilícito, pedir divórcio, uma indemnização e evitar a partilha dos bens próprioss em caso de comunhão (não trabalho muito nesta área portanto desculpa-me as imprecisões). Eus ei que é algo ridículo, mas serve para mostrar alguma confusão de conceitos.

A ideia de algum «não» anda à vota disto. Ou seja: impedir que o Estado emita um juízo favorável ao aborto (que na prática se traduz em estímulo), de forma a que a mensagem continue a condenar esta realidade pelo menos como fenómeno global, sem que as mulheres sejam, individualmente punidas. Existem motivos para a despenalização dado que não se verificam os pressupostos da prevenção especial; mas existem, também, motivos para a não liberalização, visto que existe necessidade de prevenção geral, até pelos motivos de saúde pública que, aparentemente, motivam tudo isto.

Assim sendo, parece-me óbvio que, no fosso entre despenalização (penal) e liberalização (total), existe enorme margem para o «sim» e o «não» chegarem a acordo.

Por fim, e relativamente ao referendo, estou perfeitamente de acordo quando colocas a dúvidas nesses termos: para que serve um referendo vinculativo. O problema nasce, em primeiro lugar, da forma como o instituto foi pensado, e da articulação dos respectivos resultados com uma democracia representativa. Penso é que, estando a lei ao serviço da comunidade, do bem comum, da humanidade, do género, do país ou de que qualquer outra coisa, um eventual «não» deve ser interpretado com um «não» muito preciso, a uma pergunta estupidamente complexa (disso só pode o «sim» queixar-se).

Um abraço,

JB

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