Se pudesse votar depois de amanhã (vide primeiro post desta série), fá-lo-ia no “sim” por uma razão simples: a liberal. Que faz o Estado entre uma mãe e a sua gravidez? Entre uma mãe, um pai e os seus filhos? Que faria eu, votando “não”, entre todas essas mães e todas essas famílias? Que tenho a ver com a matéria? Que direito posso ter de decidir sobre assuntos tão de amor e de ódio, privados e interditos como talvez nenhuma outra coisa? Se não digo a ninguém em quem votar, que profissão escolher, como gastar o seu dinheiro, se deve casar-se ou entrar com os papéis para o divórcio, deverei ser chamado a decidir o que farão em relação aos seus filhos? O Estado, de mim ao Presidente da República, tem, do meu ponto de vista, de se afastar daqui, desta zona íntima. Há fitas a circundá-lo avisando: “entrada proibida a pessoas estranhas ao serviço”.
Não quer isto dizer que não entenda o “não”. Entendo o “não” católico, porque um verdadeiro católico, crente na boa vontade e omnisciência divina não se pode querer colocar entre Ele e as Suas criaturas e entendo o “não”, já explicitado por diversas pessoas de modo corajoso e contra-corrente, que considera, o aborto crime – porque é, repita-se, da extinção duma vida humana que se trata, de facto – e que, como tal, deve ser penalizado. Não concordo, mas entendo inteiramente porque é um argumento convicto e coerente que não fecha os olhos às suas próprias consequências.
Por isso, porque, de novo, se me afigura claro que existe verdade de ambos os lados, votaria “sim”, por ser, das duas hipóteses de resposta, aquela que assegura que ambas as verdades serão respeitadas (e sim, a expressão é, rigorosamente, “ambas as verdades”).
É claro que acontecerão abortos inconscientes, desnecessários, desproporcionais. Mas importa-me que se permita aos outros, aos conscientes e ponderados, que possam acontecer; que se reconheça que um casal ou mesmo uma mãe sozinha possam decidir, com maior acuidade e justiça que a multidão, acerca da bondade de trazer uma criança ao mundo, que pode não ser desejada; que pode ter sido abandonada, de antemão, por um dos progenitores; que pode ter furado o apertado sistema de segurança dos métodos anticonceptivos e vir tornar ainda mais miserável a vida dum grande agregado familiar com já poucos recursos. Por exemplo.
Quando defendemos a vida como valor absoluto e intocável, esquecemo-nos de que o simples estar vivo pode ser uma condenação. Trocaria, todos os dias, esse direito à vida puro e simples pelo da dignidade. Uma criança tem o direito de ser sonhada e não, apenas, um imprevisto com que se vai ter de lidar.