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O «não», desde cedo, insistiu em mostrar imagens de fetos com dez semanas.
O «sim» desde logo acusou o «não» de explorar sentimentalismos toscos, e de não ter pejo ou vergonha na selecção das armas.
O «não», naturalmente, prosseguiu com a exibição de imagens dado não há que ter vergonha de mostrar algo que existe: um feto de dez semanas.
O «sim», naturalmente, prosseguiu na condenação das imagens, sobretudo porque não tinha imagens de mulheres presas por terem praticado um aborto.
No entanto, e para além desta perspectiva algo limitada e relativa à habilidade das respectivas campanhas, a perturbação do «sim» com as imagens de fetos com dez semanas, deve-se ao facto de, através das mesmas, todos podermos compreender, embora nem sempre explicar, aquilo que está em causa no referendo.
Parte dos argumentos desta campanha centraram-se em dois conceitos chave: o feto, nome atribuído a um determinado estádio do desenvolvimento intra-uterino do ser humano, e a liberdade (da mulher, claro está) na prossecução, ou não, de uma gravidez.
Neste âmbito, muito para além dos argumentos possíveis esgrimidos ao longo destes últimos meses, o que as imagens do feto permitem a todos os eleitores ver, é o seguinte: o feto é bem mais que um feto, e a liberdade da mulher, movida a humores e possivelmente condicionada por episódios semânticos, não basta, em si, para o definir.
É um facto: o feto tem um rosto, tem face, uma cara que nos permite reconhecê-lo naquilo que todos temos em comum, mas também na sua singularidade. Nesse momento, o feto surge-nos como um semelhante. Transforma-se, subitamente, em alguém, e não no quid, no algo, que o «sim» ostensivamente ignorou. Não há, desde modo, nada de mais concreto para a discussão neste referendo que a imagem de um feto de dez semanas: nada há de mais verdadeiro, real e profundo, do que a constatação de que estamos perante uma pessoa, uma verdadeira pessoa, em desenvolvimento, é certo, dependente, com certeza, mas pessoa, que, no sentido clássico, representa já um certo papel perante nós. É, pois, no momento particular em que encamos o rosto daquilo a que queremos negar tutela, que compreendemos muito mais, e muito para além dos conceitos abstractos em debate. Nomeadamente que ele ou ela, o feto, é já sujeito numa relação - com a mãe -, da qual nasce uma responsabilidade para esta.
É curioso: numa campanha em que o «sim» apregoou que a dignidade do feto se liga e desliga em função da existência, ou não, do afecto materno, e do valor que a mulher grávida, entende, em cada momento, atribuir ao filho, foi, portanto, a divulgação de um rosto que mais irritou o «sim».
Existem inúmeros argumentos técnicos para justificar o «sim» Mas afinal, como definiu Buber, uma pessoa é o entre que está face a face. Uma pessoa não é algo de técnico, matemático, abstracto, biológico. Não é um conceito que depende do ligar e desligar de afectos de terceiros. A vida não explicamos, não condicionamos: compreendemos. Posto isto, domingo não referendamos somente o destino das vidas que as mães carregam consigo, mas a própria ousadia de virarmos a cara ao rosto que compreendemos, em nome de argumentos que apenas explicamos.
Via: Blogue do Não