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Despeço-me deste debate longo e muitas vezes cansativo reunindo os argumentos que me fazem votar Sim no dia 11.
1. Voto Sim porque considero que, a lidar com o problema do aborto, se tende a apontar muito facilmente o dedo à mulher que o pratica, esquecendo o problema fundamental: a demissão de uma sociedade sem condições económicas e morais para acolher novas vidas.
Neste debate, e como alguém bem sintetizou, estão em confronto dois campos que se distinguem pela presença ou ausência de fé. É o problema do valor vida enquanto valor intrínseco que está em jogo e a sacralização dessa vida desde o momento da concepção. O que está em causa são os diferentes conceitos sobre o valor da vida e a sua sacralidade enquanto base de algum pensamento religioso tradicional. A esta concepção opõem-se perspectivas culturais, filosóficas e morais (sim, morais: olhem para Ronald Dworkin ) distintas sobre o projecto de vida dos indivíduos de acordo com o horizonte que podem traçar.
Da minha parte, não consigo colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte porque não discuto, porque não me parece discutível, o problema metafísico da pessoa do feto. Respeito as posições dos que concebem a vida do feto como valor (quase) absoluto. Mas por mais respeitáveis que possam ser esses valores e posições, ao acharem-se de tal forma definitivos e universais ao ponto de se quererem impor legalmente, padecem da mesma «arrogância» que muitas vezes vemos associada a um certo egoísmo da subjectividade.
Na medida em que o problema metafísico da pessoalização do feto não me parece susceptível de ser discutido racionalmente, resta discutir o problema que questiona se o feto será ou não uma pessoa do ponto de vista jurídico.
2. O Direito é um mínimo instrumental de um máximo cultural ou social – a realização pessoal de cada um, e distingue-se fundamentalmente da moral por exprimir um dever ser necessariamente vinculativo, por oposição a alternativas sobre o modelo de vida e organização social.
Não sou liberal ao ponto de afirmar que o Direito não está, muitas vezes, ao serviço de um código moral maioritário e dominante. Mas sou contrário a que o Direito se possa deixar instrumentalizar pela moral dominante num dado momento histórico, esmagando uma das riquezas fundamentais da Democracia: o pluralismo ideológico.
É por isso que o Direito Penal, com a particularidade especialmente gravosa de lidar com a liberdade, se deve abster de conter incriminações que tenham por base imperativos puramente morais, devendo, uma vez que estamos numa Democracia pluralista, salvaguardar um espaço livre para modos de vida alternativos. E essa abertura, essa salvaguarda de opções morais distintas só se garante votando Sim.
3. Defensores do Não insistem no efeito preventivo (de intimidação) que a previsão do crime de aborto garante. Mas sabemos todos que não é por estar consagrado o «crime de aborto» que a condenação da vida do feto se fará ou deixará de fazer. Por muito utilitarista e imoral que possa parecer aos olhos dos defensores do Não, uma mulher que faz um aborto fá-lo, em geral, por circunstâncias económicas, familiares ou culturais.
4. Também se diz que a despenalização e legalização do aborto serão um estímulo à prática de aborto. Com o raciocínio invertido podemos concluir que a penalização do aborto estimula igualmente o aborto, mas o aborto clandestino.
A virtualidade do Sim, para além de pôr cobro a uma sanção penal hoje quase unanimemente reconhecida como desajustada , reside também na possibilidade de reduzir muito significativamente os números do aborto clandestino. Parti para este referendo com um pressuposto realista fundamental: legal ou não, o aborto continuará a praticar-se. Acreditar que é possível erradicar totalmente a prática de aborto releva um utopismo que, como todos os utopismos , conduz a resultados desastrosos (no caso, e dada a natureza criminógena do próprio crime de aborto, perigo para a saúde, e muitas vezes a própria vida, da mulher). É por isso que a prática de aborto em estabelecimento de saúde legalmente autorizado me parece a melhor forma de combater o aborto como problema geral, na medida em que permite à mulher uma decisão informada e aconselhamento médico que de outra forma nunca poderia ter.