3. Nós os católicos não podemos exigir que este sentido cristocêntrico e eucarístico da história humana seja seguido por todos os homens. Há outras culturas a inspirar o sentido da actividade humana. As principais, porque mais numerosas, que hoje influenciam a construção da história, são as que enraízam noutras grandes religiões, em que a unidade entre a visão religiosa e o sentido ético de toda a existência humana são explícitas. Embora reconhecendo o seu peso de influência no momento presente da vida da humanidade, não as referirei agora explicitamente, porque elas não são a alternativa principal à visão cristã da sociedade, no contexto cultural do Ocidente em que nos situamos. Aqui, a visão do mundo que se contrapõe a uma cultura de matriz cristã, em que a fé em Jesus Cristo, revitalizada continuamente na Eucaristia, é fonte inspiradora do sentido de toda a vida humana, são os diversos racionalismos naturalistas, baseados na exclusividade da razão como fonte da verdade, no carácter absoluto da liberdade individual, considerada como fonte principal do sentido ético e da moralidade, e os pragmatismos de uma sociedade materialista, em que só tem valor o que é útil, rentável, ou dá prazer.
A convivência dos cristãos com estas visões naturalistas e racionalistas da história, pode fazer-se ao nível do debate das ideias, mas sobretudo na coerência dos cristãos com Jesus Cristo em Quem acreditam e com a Eucaristia que celebram. Só esse compromisso real na vida concreta, é verdadeiramente fecundo na transformação da história. Não está garantido que todos os católicos transponham para a vida e dêem densidade histórica à fé que celebram. A tentação de reagir no mundo com critérios mundanos e reservar a dimensão religiosa para uma esfera íntima e interior, é grande e expressão importante de infidelidade. Separar a fé da vida concreta não é bom, nem para a fé, nem para a vida, pois é exactamente a Vida verdadeira que celebram na Ceia do Senhor.
Esta perspectiva naturalista da história, de tendência racionalista e naturalista, convergiu na visão laicista da sociedade, que relega a fé para a esfera da privacidade individual, negando-lhe qualquer influência na inspiração ética da história. Esta visão do mundo e do homem exprimiu-se, ao nível do pensamento, em correntes filosóficas, foi protagonizada socialmente por organizações, e dilui-se, hoje, na concepção individualista da verdade e da liberdade. O mistério da Páscoa, celebrado na Eucaristia, põe o cristão continuamente em confronto com o carácter inelutável da Senhoria de Cristo ressuscitado como centro da história humana.
A maçonaria e a definição do sentido da História
4. Entre as organizações que protagonizaram esta visão imanente e laicista da história, avulta a importância da Maçonaria que, a partir de meados do século XVII, fez sentir a sua influência em todas as grandes correntes de pensamento e nas principais alterações sócio-políticas. Não a referiria explicitamente, se um recente acontecimento não a tivesse trazido para as primeiras páginas das notícias e tivesse criado, em muitos católicos, interrogações e perplexidade. De facto, as cerimónias fúnebres de uma importante personalidade do Estado e membro destacado da Maçonaria, realizadas nos espaços da Basílica da Estrela, foram ocasião dessa confusão, não tanto por o “depósito” do defunto se ter feito numa das capelas mortuárias da Basílica, em princípio abertas a quantos respeitosamente as procuram, mas porque o Grão-Mestre da Maçonaria, com o nosso desconhecimento, convocou para um “ritual maçónico”, em honra do defunto, a realizar num espaço da Basílica. Esta iniciativa, que considero imprudente e indevida, provocou indignação em muitos católicos, que incessantemente têm pedido um esclarecimento da Hierarquia da Igreja.
É uma longa e atribulada história a das relações da Maçonaria com a Igreja durante os últimos três séculos, expressa em ataques, anti-clericalismo, rejeição da dimensão misteriosa da fé e da verdade revelada, a que a Igreja respondeu com várias condenações, com penas de excomunhão para os católicos que aderissem à Maçonaria. É um processo que tem de ser situado nas grandes transformações culturais e sócio-políticas desse período, em que elementos como a compreensão da natureza e legitimidade do poder político, a promoção e defesa da liberdade individual, os processos revolucionários em cadeia e a “questão romana” que pôs fim ao poder temporal dos Papas, foram pontos quentes a alimentar um conflito. Conceitos, então polémicos, como o da liberdade de consciência e de tolerância, são hoje aceites pela própria Igreja, no quadro de sociedades democráticas e pluralistas. A verdadeira reacção à visão do mundo veiculada pela Maçonaria, têm os católicos de encontrá-la na profundidade da sua fé, sobretudo quando a celebram na Eucaristia, como inspiradora da vida e da história, fonte de sentido e fundamento de uma ordem moral. Sem essa coerência de profundidade, cairão em rejeições e anátemas, pelo menos desenquadrados da actual maneira de conceber a missão da Igreja no mundo.
5. A questão crucial, sobre a qual os católicos têm o direito de esperar uma resposta do seu Bispo, é esta: a fé católica e a visão do mundo que ela inspira, são compatíveis com a Maçonaria e a sua visão de Deus, com o fundamento de verdade e de moralidade e o sentido da história que veicula? E a resposta é negativa. Um católico, consciente da sua fé e que celebra a Eucaristia não pode ser mação. E se o for convictamente, não pode celebrar a Eucaristia. E a incompatibilidade reside nas visões inconciliáveis do sentido do homem e da história.
A Maçonaria sempre afirmou, e continua a afirmar, a prioridade absoluta da razão natural como fundamento da verdade, da moralidade e da própria crença em Deus. A Maçonaria não é um ateísmo, pois admite um “deus da razão”. Exclui qualquer revelação sobrenatural, fonte de verdades superiores ao homem, porque têm a sua fonte em Deus, não aceitando a objectividade da verdade que a revelação nos comunica, caindo na relatividade da verdade a que cada razão individual pode chegar, fundamentando aí o seu conceito de tolerância. A Igreja também aceita a tolerância, mas em relação às pessoas e não em relação à objectividade da verdade.
Esta atitude perante Deus e perante a verdade gera uma “sabedoria” global, ou seja, uma visão coerente da realidade, que é incompatível com a visão do homem e da sociedade que brotam da fé cristã, que supõe a inter-acção de Deus e do homem, no diálogo fecundo e apaixonante da natureza e da graça. A Igreja tem o dever de orientar os católicos e é a eles que digo que a nossa fé e o sentido da vida que ela inspira é incompatível com o quadro gnóstico de sentido veiculado pela Maçonaria.
6. Haverá, ainda hoje, uma luta entre a Maçonaria e a Igreja? Não nos termos em que se pôs no passado, embora não devamos ser ingénuos: a Maçonaria, sobretudo em algumas das suas “obediências”, lutará sempre contra valores inspiradores da sociedade que tenham a sua origem na dimensão sobrenatural da nossa fé. Sempre que isso acontecer, demos testemunho da esperança que está em nós (1Pet. 3,15). A expressão de uma visão laicista da sociedade assenta também sobre a falta de coerência dos cristãos com as implicações sociais da fé que professam e da Eucaristia que celebram.
Na Eucaristia descobre-se que só o amor transformará a História
7. Esta é a novidade decisiva que define o sentido novo da construção da História: em cada Eucaristia, através do Espírito Santo, que é o Amor divino, nós mergulhamos na mais radical experiência de amor que aconteceu desde a criação do mundo. A partir dela, nós mergulhamos na realidade do mundo, dinamizados por esta certeza: só o amor transformará positivamente a História. Escutemos o Santo Padre: “A Eucaristia não é expressão de comunhão apenas na vida da Igreja; é também projecto de solidariedade em prol da humanidade inteira… O cristão, que participa na Eucaristia, dela aprende a tornar-se promotor de comunhão, de paz, de solidariedade, em todas as circunstâncias da vida. A imagem lacerada do nosso mundo, que começou o novo milénio com o espectro do terrorismo e a tragédia da guerra, desafia ainda mais fortemente os cristãos a viverem a Eucaristia como uma grande escola de paz, onde se formem homens e mulheres que, a vários níveis de responsabilidade na vida social, cultural, política, se fazem tecedores de diálogo e de comunhão”.
O Santo Padre realça esta relação que há entre a celebração e a revolução do amor, sobretudo no compromisso com os mais pobres. Escutemo-lo ainda: “Há ainda um ponto para o qual queria chamar a atenção, porque sobre ele se joga, em medida notável, a autenticidade da participação na Eucaristia celebrada na comunidade: é o impulso que esta aí recebe para um compromisso real na edificação duma sociedade mais equitativa e fraterna. Na Eucaristia, o nosso Deus manifestou a forma extrema do amor, invertendo todos os critérios de domínio que muitas vezes regem as relações humanas e afirmando de modo radical o critério do serviço: «Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc. 9,35). Não é por acaso que, no Evangelho de João, se encontra, não a narração da instituição eucarística, mas a do «lava-pés» (Jo. 13,1-20): inclinando-se para lavar os pés dos seus discípulos, Jesus explica de forma inequívoca o sentido da Eucaristia. São Paulo, por sua vez, reafirma vigorosamente que não é lícita uma celebração eucarística onde não resplandeça a caridade testemunhada pela partilha concreta com os mais pobres (1Cor. 11,17-22.27-34).
Por que não fazer então deste Ano da Eucaristia um período em que as comunidades diocesanas e paroquiais se comprometam de modo especial a ir, com operosidade fraterna, ao encontro de alguma das muitas pobrezas do nosso mundo? Penso no drama da fome que atormenta centenas de milhões de seres humanos, penso nas doenças que flagelam os países em vias de desenvolvimento, na solidão dos idosos, nas dificuldades dos desempregados, nas desgraças dos imigrantes. Trata-se de males que afligem, embora em medida diversa, também as regiões mais opulentas. Não podemos iludir-nos: pelo amor mútuo e, em particular, pela solicitude por quem passa necessidade, seremos reconhecidos como verdadeiros discípulos de Cristo (Jo. 13,35; Mt. 25,31-46). Com base neste critério, será comprovada a autenticidade das nossas celebrações eucarísticas”.
8. São muitos os pedidos de socorro e de ajuda fraterna que são dirigidos à Igreja de Lisboa. Participámos, recentemente, na grande campanha de solidariedade em favor dos países do Indico, devastados pela tragédia do sismo e do “maremoto”. Isso não diminuirá, assim o espero, a generosidade dos fiéis, expressa na já tradicional “Renúncia Quaresmal”. Tendo em conta os muitos pedidos que nos chegam, proponho que a nossa “renúncia” se destine, este ano, a constituir um “Fundo Diocesano de Ajuda Inter-Eclesial”, que poderá continuar a ser alimentado por outros donativos, e onde encontraremos maneira de ir respondendo a esses pedidos de auxílio. Aperfeiçoaremos, assim, a nossa capacidade de ajuda fraterna.
Que a Eucaristia seja nosso alimento e nossa força nesta caminhada para a Páscoa. Aí aprenderemos a compreender os caminhos por onde o Espírito nos conduz, na edificação de uma humanidade renovada pelo amor.
Lisboa, 22 de Janeiro de 2005, Solenidade de São Vicente, Diácono e Mártir, Padroeiro Principal do Patriarcado de Lisboa
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
http://www.angelfire.com/pq/unica/christ_2005_masonry_by_d_policarpo_cardenal.htm (http://www.angelfire.com/pq/unica/christ_2005_masonry_by_d_policarpo_cardenal.htm)