As elites ideológicas são integradas pelos produtores de ideias: pensadores, intelectuais, letrados e universitários interventores,jornalistas influentes. Ao criarem ideias e sistemas tanto o podem fazer tendo em vista o reforço do sistema como a destruição do sistema político para o substituir por outro. Todos os utopistas se inserem nesta linha, porque buscaram de um modo verdadeiramente consistente oferecer sociedades alternativas melhores que aquela em que viviam ou então desenhar sociedades pavorosas (distopias) que não podiam deixar de ser identificadas como o lógico desenvolvimento das suas sociedades.
No caso das sociedades agradáveis encontram-se construções fundamentais como as de Platão (A República), e depois sequelas como as de Thomas Morus (Utopia), Campanella (A Cidade do Sol), Francis Bacon (A Nova Atlântida), Charles Fourier (Théorie des Quatres Mouvements), mas também inovações sempre condicionadas pelo génio grego, como as de Rousseau e mesmo as do psicólogo americano B. Skinner. E porque não, como alguns advogam, não incluir nesta categoria os escritos mais delirantes do famoso Marquês de Sade, como o celebrado livro Os Mil Dias de Sodoma e Gomorra? Se a loucura de Fourier com a sua organização social detalhada em unidades chamadas falanstérios pode ser considerada, se a Icarie de Cabet pode receber tratamento, é anticientífico relegar Sade para a galeria dos monstros, que imaginaram sociedades absolutamente nefastas ou modos de vida social completamente fora dos princípios que regiam uma sociedade visível e historicamente acontecida. Talvez não seja difícil vir a gostar mais dos mundos de Sade que dos de outros nomes sonantes do socialismo científico, que prometeram mundos e fundos com os pais fundadores, fundos e mundos que se tomaram uma realidade claramente monstruosa com os instrumentalistas do leninismo, mas cujo passivo passou a ser do domínio público, depois da queda do Muro de Berlim. Era caso para se dizer como slogan: "a Marx sim, Lenine não". O Marxismo-Leninismo é uma paródia.
No caso das sociedades negativas são paradigmáticos os livros de George G. Wells (A Terra dos Cegos), George Orwell (1984), Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo), Zamyatine (Nós), e uma inumerável legião de autores que explorou até à saciedade o conceito de distopia técnica a começar por Philip Kindred Dick e sem que se saiba aonde essa linha irá terminar. Kindred Dick, mais conhecido pelo filme Blade Runner que pelas suas espectaculares novelas distópicas, não deve ser separado de Gore Vidal ou John dos Passos por causa do estilo: é precisamente pelos temas tratados com qualidade que K. Dick e outros têm que ser aceites como testemunhas do nosso tempo. A perspectiva destrutiva é visível, mas todo o encanto da construção enreda a inteligência para que ela fique amarrada ao modelo, que possui além do mais uma lógica intrínseca.
Os soviéticos, checos e polacos, ao tempo da ditadura do proletariado, também se entregaram a este exercício como o provam os livros do checo Karel Kapek (A Guerra das Salamandras, A Fábrica de Absoluto), dos russos, irmãos Abramov (Cavaleiros Vindos de Parte Nenhuma), dos irmãos Strugatsky (Stalker, O Miúdo, Prisioneiros do Poder), do polaco Stanislas Lem (Éden, Memórias Encontradas numa Banheira, A Voz do Dono) e assim por diante.
O que significa isto? Significa que em sociedades concentracionárias se encontra uma voz literária para denunciar o sistema e que essa voz veicula a distopia. Uma vez que se vive na utopia, na sociedade perfeita, os intervenientes da elite ideológica querem provar que se vive em distopia ou que se caminha nesse sentido. Mas também, que nas sociedades democráticas se encontram tendências fundas para autonomizar sociedades felizes ao estilo de Platão e seus seguidores, que aliás Karl Popper detestava, como fica amplamente provado no seu livro A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Parece excessiva esta acrimónia de Popper contra Platão, separados por épocas, mas também é preciso entender que em matéria de ideias não existe tempo: há contiguidade.
Que podem fazer então as elites ideológicas? Influenciar os modos de pensamento, como entendeu Antonio Gramsci, e preparar o caminho de uma nova ideologia ou de uma nova fórmula política triunfante, mobilizadora, capaz de derrubar a fórmula da elite dirigente. Neste sentido, funcionariam em aliança com a contra-elite. Gramsci chamou a estes intelectuais afectos ao novo príncipe (novo poder) os intelectuais orgânicos, destinados a destruir as bases e fundamentos ideológicos de elites enraizadas, como seja a religiosa, a militar e a política. A sua função crítica é deletéria e é preciso que o seja nesta conjuntura. As sociedades burguesas encontram-se defendidas no plano intelectual por diversos mecanismos de justificação e o que é preciso e urgente é desmontá-los. Entre eles está o Direito, a Religião, o conceito de Família, de Escola, o Serviço Militar e assim por diante, como nos haveria de especificar o francês Althusser. O melhor será a infiltração e o uso dos meios de comunicação de massa para alterar a cultura. Se há uma teoria de mudança social e política muito coerente vinda dos marxistas reflexivos é sem dúvida esta: as trincheiras intelectuais das sociedades capitalistas têm de ser derrubadas pelos intelectuais orgânicos situados nos mais diversos meios de influência, nomeadamente os meios de comunicação de massa, os quartéis, as universidades, as igrejas. Gramsci situa-se aqui como um dos maiores pensadores da mudança induzida através de um grupo selecto que deveria preparar as vias do novo príncipe, o partido comunista italiano86• E por aí regressamos a um leninismo especioso que os comunistas italianos do aparelho não apreciaram de todo, a começar no seu chefe Palmiro Togliatti (1893-1964).
Noutra perspectiva, platónica, a elite ideológica rodeia o soberano e ajuda a governar segundo a sabedoria e o bem comum. É para onde se inclina Platão nos seus últimos dias (As Le is) e para onde tende uma grande elite intelectual habituada a receber do poder dádivas e a turiferar qualquer déspota como fez Voltaire, o irritado literato e enciclopedista, crítico dos tronos e dos deuses, e que por algumas moedas em prata da Prússia endeusou o seu Monarca, a quem escrevia encomiasticamente. E fê-lo, tendo assegurado como contra-partida, uma pensão do rei da Prússia. Mas este tipo de actividade persistiu, mantendo indubitavelmente a sua importância até à actualidade, o que justi-fica, por si só, uma clara e convicta "carta de recomendação" para a pós-modernidade. Os intelectuais podem ajudar o poder e defendê-lo, com as respectivas contra-partidas, e podem agir como um contrapoder e potenciar com ideias novas e uma fórmula ideológica nova, nomeadamente utópica, a contra-elite.
As elites ideológicas podem estar longe, ter o seu centro de decisão em outro país, mas isso não significa que não possam atingir o poder num Estado aparentemente estável. Um bom estudo de caso seria o Irão, sob o poder modernizante da dinastia do Xá Rehza Pahlevi. A população predominantemente camponesa pouco entendia da modernização e pouco beneficiava de tal processo. Segue-se daqui que o fundamentalismo chiita encontrou terreno. acolhedor e os ideólogos chiitas pouco tiveram que fazer a não ser difundir a grande "boa nova": o regime ia cair e um novo regime se iria levantar seguindo os ditames do Corão. E assim foi para espanto de muitos que não acreditam no poder ideológico e só se preocupam com o poder das armas, o propriamente político.
Ao contrário, o enfrentamento do general De Gaulle. Com as manifestações ideológicas gigantescas, de estudantes e trabalhadores no Maio de 1968, que o desafiaram no seu poder legitimado por eleições, enquanto chefe de Estado francês não hesitou em utilizar parte do seu exército estacionado na Alemanha para dominar os distúrbios em Paris, e manter assim o controlo do poder político, o que naquele contexto, significava o controle das massas.
De uma forma geral as elites ideológicas encontram-se também divididas. Uma parte serve os governantes e reforça-lhes a fórmula em que assenta a sua governação. Funcionam como Voltaire para Frederico da Prússia. Outra parte empenha-se no derrube do sistema de poder e apoia uma contra-:-elite, no seio da qual alguns elementos desta elite já se encontram.
Funcionam como Vaclav Havel durante o regime comunista na Checoslováquia. Porém, há a assinalar que os intelectuais, os universitários e os religiosos, podem optar por uma visão fria dos acontecimentos e destacar-se da luta que se desenrola. Mas o mais certo é o investigador não encontrar casos significativos desta atitude. Com Estaline no poder, a elite ideológica russa e uma parte significativa da elite ideológica do Ocidente só sabia fazer uma coisa: aplaudir as megarealizações de um dos maiores assassinos de homens de todos os tempos. Essa bela unanimidade interna e externa nunca foi conseguida por Hitler, que pareceu sempre um monstro maior, mas como se sabe tudo depende de onde se olha e para onde se olha. Se O Livro Negro do Comunismo teve algum mérito foi certamente o de expor publicamente os custos em vidas humanas de uma vertigem de poder, que inicialmente fora uma vertigem utópica numa pobre terra de camponeses, provas que ninguém pode actualmente contestar.
Assim a movimentação e agitação das elites ideológicas parece não poder ser submetida a uma regra geral: elas optam entre os campos que se enfrentam na arena política. Toma-se necessário estudar diversos modelos para propor conclusões para cada um, o que valerá, depois desse trabalho de campo paciente, um esforço comparativo e teórico.
Fonte: BESSA, Marques, Elites e Movimentos Sociais, Universidade Aberta.