Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Há anos que um momento político televisivo não me indispunha e, simultaneamente, esclarecia tanto. A última vez foi quando Mário Soares afirmava, em pleno debate com Cavaco Silva, que os líderes europeus se queixavam, a ele, Soares, de Cavaco ser tosco, desinteressante, «sem conversa». Nesse momento, ficou claro que o capital senatorial (de fairplay, respeito e seriedade) acumulado pelo «pai» da democracia portuguesa se tinha, finalmente, esfumado. Ontem, muita coisa ficou clara no debate entre Manuela Ferreira Leite (MFL) e José Sócrates (JS). Desde logo, ficou provada a inabilidade de MFL para o circo mediático. MFL, sobretudo na primeira metade do debate, demonstrou um sofrível domínio técnico dos «dossiers» politiqueiros em que JS é um catedrático. Pode pôr-se em causa a licenciatura de JS em engenharia, mas jamais se poderá duvidar da sua cátedra em política. MFL teve imensa dificuldade em desmontar a teia demagógica de um político artificioso, que fez do carreirismo político o centro da sua vida e, por isso, calcula e planeia e domina (ou pensa dominar) ao milímetro tudo o que diz e a forma como o diz. Porque é preciso estar atento. Quem o estiver, perceberá, contudo, que toda a engenharia imagética e o sumptuoso edifício retórico de JS são fatalmente atingidos por uma constante dose de artificialidade e por uma intermitente e aleatória série de desvios que conspurcam indelevelmente a «performance» e levantam um pouco do tapete. O esforço de contenção do «animal político» está paradoxalmente presente na forma como, ainda que cautelosamente (porque ele próprio, ou algum assessor, tomou consciência de que era necessário travar a tradicional e natural ferocidade da personagem), JS interrompe o seu adversário, faz caretas, fala por cima, usa a chacota (irónica e curiosamente como Manuela Moura Guedes o fazia no Jornal Nacional) na direcção do seu interlocutor. O homem que passa a vida a queixar-se infantilmente da «maledicência» dos outros (como se ele fosse um santo), é o primeiro a denunciar-se por baixo daquela (nova) capa de suposta elegância e suavidade. A forma como lida com a crítica e com o juízo de terceiros relativamente à sua política e ao seu comportamento é disso um sintoma, apenas atenuado pela dose auto ou compulsivamente administrada de Xanaxes de urbanidade e comedimento, não volte à cena o «animal feroz».
Não foi por acaso que, por diversas vezes no debate, JS fez cara de inocente, afirmando não perceber o que estava a se dito por MFL. Este debate foi claríssimo na exposição das águas por onde navega a mentalidade socrática: algures entre o popular-pimba do «vou fazer-me de parvo» (como se nada do que estivesse a ser-lhe apontado fosse com ele) e a surpresa meio indignada de quem está ingenuamente convencido de que só os maus, os intriguistas e os velhos do Restelo não conseguem compreender a sorte que o país teve em ter encontrado tamanho líder. O facto de JS achar e acreditar e jurar que fez o melhor, que se esforçou como nunca o tinha feito em toda a sua vida, que suou a camisola nos joggings matinais dezenas de vezes, basta-lhe. Tudo o resto é incompreensão, má-fé ou, claro está, maledicência. Sócrates chega ao fim do mandato com um défice da ordem dos 7%, dívida pública de 80%, peso do Estado na economia de 50%, uma taxa de desemprego recorde, um aumento brutal da carga fiscal, mais de 12.000 queixas na provedoria de funcionários públicos, suspeitas de tentativa de controlo dos media e do funcionalismo público, mas nada disso parece interessar ou valer perante a boa vontade, o esforço, a boa-fé e o optimismo do chefe. Acontece que esta atitude e esta mentalidade foram sempre terreno fértil para o crescimento de tiques despóticos, autoritarismo, controlo e cegueira – coisas a que assistimos nestes últimos quatro anos.
Voltando ao debate, ficou claro que MFL perdeu imensas oportunidades – por falta, lá está, da tarimba e da retórica políticas - de arrasar a tonta e a espaços pueril argumentação de JS. Por exemplo, MFL devia ter aproveitado a oportunidade para lhe dizer, ao longo do debate, “está a ver, caro Eng., por que razão afirmei que o senhor não percebia nada de Economia”, quando ele insistia no seu predilecto e já insuportável exercício de anacronismo económico: dar exemplos de decisões de há seis ou mais anos atrás para supostamente apanhar MFL em contradição. MFL devia ter repetido várias vezes, para que ele o percebesse de uma vez por todas, que não está em causa fazer ou não fazer o TGV, está em causa não haver condições para o fazer agora. MFL devia ter sido mais assertiva quando referiu o que é claro na política socialista: achar que o papel do Estado é sugar recursos e riqueza para tapar os buracos que a orientação governativa vai criando, dando por isso oportunidade a certos governantes de brilhar como se fossem senhores de uma bondade infinita, ao invés de estar focalizado em criar condições para a criação de riqueza liquida. MFL devia ter sido mais clara na explicação do que se vai passar com a Segurança Social daqui a dez ou quinze anos (é que os fundos de pensões privados podem perder valor pelo mercado, mas as pensões públicas vão desvalorizar por decreto). MFL devia ter repetido, de forma bem mais convincente, que ela, ao contrário de JS, nunca foi primeiro-ministro. Dizer-lhe, olhos nos olhos, aquilo que JS parece ainda não ter percebido: não é MFL, nem o governo do Dr. Santana, nem o governo do Dr. Durão Barroso, nem o governo do Dr. Cavaco (e podemos sempre recuar até Joaquim António de Aguiar) que estão a ser julgados. É o seu.