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De Miseria Humanae conditionis

por DBH, em 22.03.10

Ontem à noite estalou a discussão na minha timeline do twitter. Por causa do documentário, BBC Panorama, exibido na SIC-Notícias sobre os crimes de abuso sexual realizados por padres católicos.

 

A discussão generalizou-se e eu, incapaz de responder às várias posições, prometi transportar para aqui a discussão. Há matérias difíceis de conversar em 140 caracteres e, talvez, no blog é mais fácil usar argumentos em vez de soundbites.

 

Existiram demasiados abusos em instituições católicas. Abusos criminosos, abjectos, cometidos por quem, muitas vezes, tinha a responsabilidade de zelar por menores de idade. Abusos realizados por homens, adultos, que têm de ser levados à justiça pelos crimes que cometeram.

 

Nisto, creio, estamos todos de acordo.

 

Mas, parece, há quem escreva que a responsabilidade não é de esses homens, adultos, criminosos. O problema, dizem, é a "instituição", a Igreja. Ou o Papa. Claro que a Igreja tem problemas, faz erros e deve corrigir-se mas, ao colocar-se o crime na Igreja, está-se a desresponsabilizar criminosos, só porque são padres católicos.

 

Bem sei o argumento: uma prática reiterada e a ocultação pela "hierarquia". Vamos por partes:

 

Quanto à prática reiterada de um crime, temos visto tudo misturado: abusos sexuais com punições corporais (nos anos cinquenta, a sério? como num caso alemão...), professores com sacerdotes, etc.  Não tenho dúvidas que parte dessas práticas foram reiteradas pelo erro, e talvez crime, de olhar para o lado demasiadas vezes - de saber e não dizer ou, pior, de resolver mudando o sacerdote de paróquia. Esse erro tem de ser corrigido e esse crime julgado. Tão simples?

 

Infelizmente não. E essa dificuldade, na forma como a Igreja lidou com o assunto até recentemente, tem que ver com a questão da "ocultação".

 

 

Primeira questão:

 

Na minha discussão de ontem, afirmava-se que "a prova definitiva" do "política de encobrimento" estava encontrada. Era um documento secreto, este.

 

O documento, chamado Crimen Sollicitationis, referido no documentário foi assim descrito pelo Diário de Notícias (em 2006):

 

"Um documento secreto do Vaticano, elaborado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, o actual Papa, terá sido utilizado durante 20 anos para instruir os bispos católicos sobre a melhor forma de ocultar e evitar acusações judiciais em caso de crimes sexuais contra crianças.

Segundo a BBC, que ontem divulgou a existência desta cartilha num programa televisivo intitulado Crimes sexuais e o Vaticano, o documento de 39 páginas, escrito em latim em 1962 e distribuído pelos bispos católicos de todo o mundo, impõe um pacto de silêncio entre a vítima menor, o padre que é acusado do crime e quaisquer testemunhas ou pessoas a par do ocorrido. Quem quebrasse esse pacto seria excomungado pela Igreja Católica." (...) "Os críticos garantem que o documento servia apenas para evitar a eficácia de qualquer acusação judicial por crimes sexuais - e também para silenciar as vítimas."

 

- Já agora, uma busca no google mostra que o "então cardeal Joseph Ratzinger" não era nem cardeal nem sequer Bispo, em 1962 -

 

Estas instruções referem-se à "solicitação" no confessionário - ou seja, propostas ou actos sexuais no âmbito da confissão -, são baseadas no Código de Direito Canónico e não referem - mas incluem - o abuso com menores de idade. Eu sei que isto dificulta a interpretação, além de ser escrita em latim, mas não nos podemos esquecer qual a função de tão "relevante prova".

 

- Entendo que é difícil explicar a diferença entre a lei canónica e as leis, civis ou penais, que neste documento são chamadas de "positivas". No entanto, esta instrução é uma adenda ao Código Canónico (neste caso do de 1917, creio), e nunca poderia ir contra este -

 

Este documento, aqui mal traduzido e com erros óbvios, trata de instruções para os possíveis processos no âmbito dos tribunais eclesiásticos. Em lado algum fala em "evitar acusações judiciais" e se, de facto, obriga ao silêncio, fá-lo sobre o processo canónico (incluíndo as testemunhas) enquanto processo. Ou seja, o processo canónico é que é secreto, o crime que o origina não. O Bispo não é impedido de o relatar à justiça.

 

Além disso, no parágrafo 15, pode ler-se como a denúncia é obrigatória, sob pena de excomunhão. isto para evitar que o excesso de fervor religioso impedisse um fiel de denunciar um sacerdote, sendo assim obrigado a fazê-lo (by the way, quem ontem no twitter não acreditou nisto faça o favor de ir ler).

 

Mais uma nota sobre esta "prova cabal do encobrimento":

 

O "segredo inviolável" é o da confissão sacramental que, não existindo, não se aplica.

 

Segunda questão:

 

Mas, infelizmente, isto não acaba aqui. É que há um segundo documento e uma referência ao anterior feita pelo - agora sim - Cardeal Ratzinger, chamado Graviora Delicta. Esta seria, então, a prova de que o actual Papa colaborou no encobrimento!

 

Ora bem, com o novo Código de Direito Canónico, de 1983, ficaram ab-rogadas as leis canónicas promulgadas anteriormente. Só que, esta epístola da Sagrada Congregação da Doutrina e da Fé (tão secreta que está na internet do vaticano), não confirma as instruções anteriores (aliás, em parte não conformes com o novo Código), apenas as cita como tendo estado em vigência. Sendo referente aos delitos graves em relação aos sacramentos, refere igualmente os abusos sexuais no âmbito do confessionário. Aliás, no caso de crimes sexuais com menores de idade, aumenta o prazo de prescrição (do processo eclesiástico, relembre-se) para dez anos após a maioridade da vítima.

 

Acusa-se ainda de, com este documento, Ratzinger ter uma política centralizadora para encobrir os factos... No entanto, a verdade, é que este documento obriga o Bispo a informar o Vaticano e a ser esta Congregação a julgar os apelos (segunda instância, se quisermos) dos tribunais das dioceses. Isto significa que um processo destes não consegue ficar "encoberto" numa diocese remota, e obriga o próprio Vaticano a tomar conhecimento. Encobrimento? Pelo contrário.

 

 

Mas houve ocultação? Existiram ocultações, sem dúvida, que são condenáveis moralmente e, se possível, criminalmente. Mas, não é lícito chamar a todos os padres de pedófilos, como não seria em relação aos professores, aos pais, aos jornalistas, aos ilhéus, etc...

 

A Igreja Católica tem sido a entidade mais escrutinada nesta questão - e Graças a Deus, digo eu - mas este problema, que é de direitos humanos, só piora com acusações falsas e fora de contexto, como as referidas acima.

 

 

 

(pequeno aviso: respostas ou comentários que utilizem a fórmula ICAR não serão contemplados, sff)


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De DBH a 24.03.2010 às 18:06

"E ainda há gente que gasta o seu tempo a discutir estes assuntos"? E comentar não, xico maluco?
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De Pedro Coimbra a 25.03.2010 às 01:36

Exactamente caro Diogo.
Por isso mesmo não vou responder ao maluco.

 

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