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O acordo de coligação (feito programa de governo) apresentado na semana passada por Conservadores e Democratas Liberais, deve ter surpreendido alguns dos que em Portugal o leram ou que, pelo menos, dele tiveram notícia.
Por três razões:
1.
Desde logo, pelo simples facto de ser um acordo - na sua verdadeira e mais nobre acepção. Não é apenas uma intenção, mútua mas indefinida, de partilhar a governação, como acontece por cá. É, muito pelo contrário, o resultado de uma negociação sobre orientações políticas concretas e bem esclarecidas. É certo que o sistema político e eleitoral britânico gera tendencialmente maiorias estáveis de um só partido, mas isso não impediu que, perante o cisne negro saído das últimas eleições, dois partidos rivais se entendessem em cinco dias. Afinal de contas, estamos a falar de uma cultura contratualista (tão distante do nosso autoritarismo legalista), onde até o exercício do ius imperium se arrisca a estar dependente de um compromisso prévio.
2.
Depois, porque é um acordo público e transparente. Qualquer eleitor britânico pode guardar no computador ou na gaveta uma cópia e ir acompanhando a sua execução. Se a coligação desrespeitar os propósitos a que se obrigou, facilmente será apanhada. Por cá, temos por estes dias exactamente o oposto: uma espécie de coligação tácita entre o governo e o maior partido da oposição, fingindo-se ungida de sentido de Estado mas apalavrada no recato dos gabinetes, sobre não se sabe bem o quê.
3.
Finalmente, deve ainda causar alguma estranheza o facto de ter sido encontrado um common ground entre os Tories e os Lib Dems. Sim, existe uma rivalidade histórica entre os dois partidos. Mas não nos termos preguiçosos e desinformados com que ela foi tratada nos media portugueses. Basicamente, para grande parte dos nossos jornalistas, a política britânica é feita de um partido de direita (o Partido Conservador) e dois partidos de esquerda (o Partido Trabalhista e os Democratas Liberais). Por isso é que diziam ser mais fácil uma coligação entre estes dois últimos.
O problema é que os Lib Dems não são "de esquerda". Os Lib Dems são a encarnação mais recente da tradição Whig. Quando no Século XVIII a oposição clássica se cristalizou, o que fundamentalmente afastava os Tories dos Whigs era uma concepção de interesse nacional centrada na figura do Rei (o garante da existência de um espírito comum) e numa visão instrumental - quase amestrada - do Parlamento (que devia ser impedido de resvalar para o partidarismo fracturante). Algo que os Whigs recusavam, em nome da descentralização do poder, do debate parlamentar, da inovação social e das liberdades individuais. Jonathan Swift dizia que os Tories eram aqueles capazes de fazer "their utmost to save the prince and their country, whoever be at the helm". Para Samuel Johnson, um Tory era alguém "with an instinctive reverence for what was established, a respect for government and the Crown, a loyalty towards the Church of England and a prejudice in favour of the landed interest". "The first Whig was the Devil".
A tradição Whig em que os Lib Dems se inscrevem é, sim, uma tradição progressista. Mas está longe de ser a raiz marxista, socialista ou trabalhista dos partidos que normalmente dizemos "de esquerda" (é preciso lembrar que, com a excepção do Labour, as principais famílias políticas britânicas nasceram muito antes do marxismo - algo que numa democracia recente como a nossa pode ser difícil de perceber). Apesar de alguns desvios da sua praxis, o ideário fundador dos Lib Dems é o da defesa da liberdade negativa e não da liberdade positiva - para utilizar a divisão de Isaiah Berlin. Não são estatistas como o Labour, não são colectivistas nem porta-vozes de uma classe social específica, cujos interesses se propõem avançar. São, na origem, o partido das liberdades civis, do Estado moderado e da descentralização política.
E, nessa medida, estão ideologicamente mais próximos dos Tories do que do Labour. Pelo menos dos Tories que a partir da segunda metade do Século XX fizeram a síntese entre o conservadorismo e o liberalismo clássicos - aqueles (Goldwater, Enoch Powell, Thatcher, Reagan, etc.) que finalmente se aperceberam de que o mercado e a livre iniciativa e associação são os mecanismos mais eficazes para assegurar que a evolução social se faz organicamente, sem as perversidades do planeamento central.
Aliás, convém não esquecer - porque não será apenas uma curiosidade ou um mero acaso - que o fundador do conservadorismo moderno foi um eminentíssimo membro do partido Whig.
É por causa desse common ground que foi possível estabelecer um acordo cujo mantra é Freedom, Fairness, Responsibility, e - contra o espírito estatista da crise vigente - propor um conjunto bastante assinalável de medidas liberalizantes. Enquadradas, de resto, por uma introdução em que se pode ler o seguinte:
We share a conviction that the days of big government are over; that centralisation and top-down control have proved a failure. We believe that the time has come to disperse power more widely in Britain today; to recognize that we will only make progress if we help people to come together to make life better. In short, it is our ambition to distribute power and opportunity to people rather than hoarding authority within government. That way, we can build the free, fair and responsible society we want to see.
(...)
We both want a Britain where social mobility is unlocked; where everyone, regardless of background, has the chance to rise as high as their talents allow them. To pave the way, we have both agreed to sweeping reform on welfare, taxes and, most of all, our schools - with a breaking open of the state monopoly (...).
(...)
For years, politicians could argue that because they held all the information, they needed more power. But today, technological innovation has - with astonishing speed - developed the opportunity to spread information and decentralise power in a way we have never seen before. So we will extend transparency to every area of public life. Similarly, there has been the assumption that central government can only change people's behaviour through rules and regulations. Our government will be a much smarter one, shunning the bureaucratic levers of the part and finding intelligent ways to encourage, support and enable people to make better choices for themselves.