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Há 14 anos que trabalho a recibo verde (com excepção de uns poucos meses numa empresa argentina, recém-chegada a Portugal, que ainda não sabia bem em que país estava e que, por isso, assinou contrato com todos os trabalhadores que recrutou).
Habituei-me, assim, desde cedo e sem ressentimentos, a só ser pago por aquilo que produzisse. A achar a coisa mais lógica do mundo não receber dinheiro por estar estendido na praia (e logo o dobro do dinheiro do que aquele que receberia se estivesse a trabalhar). A procurar novo trabalho depois de um findar e a gerir as poupanças para acautelar esses períodos de transição.
Nunca me queixei. Acredito - e, perante a queda económica do ocidente a que assistimos, acredito cada vez mais - que um Estado deve concentrar os recursos que tem no ensino, na saúde e na justiça, na defesa, no ambiente e nos negócios estrangeiros, e em assegurar uma vida absolutamente condigna aos velhos e aos doentes. Nada mais. Acredito que quem pode trabalhar, deve trabalhar, ser pago em valores justos por isso e poupar, depois, se quiser tirar férias, comprar presentes de Natal e antecipar imprevistos.
Penso que o leitor compreenderá, por isso, que assista com distanciamento ao coro de vozes que, nos últimos tempos, clama o fim do Estado Social e dos direitos dos trabalhadores. Eu, tal como o restante meio milhão de portugueses que se estima trabalhar a recibos, nunca tive subsídios de férias e Natal que me pudessem cortar, nem subsídios de desemprego que pudessem abreviar, nem indemnizações por despedimento que pudessem reduzir.
As CGTPs, UGTs, PCs, Blocos e oposições em geral, nunca disseram nada sobre isto. Nem quando os recibos verdes foram introduzidos em Portugal, nem quando se tornaram, já não a excepção, mas a regra, se lembraram de gritar aqui-del-rei que matavam o Estado Social e as conquistas de Abril.
No final de 2011, foi mesmo pedido aos trabalhadores a recibo um imposto extraordinário de 50% sobre o subsídio de Natal que não recebem, mas que ainda assim lhes foi cobrado depois de dividirem por 14 tudo o que haviam recebido durante o ano. Mais ou menos a mesma coisa, portanto, que cobrar imposto automóvel a alguém que não tenha carro ou IMI a um sem-abrigo.
Absurdo? Sem dúvida. Mas um tipo aceita que está a trabalhar no esforço colectivo de salvação de um país e segue em frente (com a preocupação de conter o riso ao ouvir os outros dizer que eles é que estão a pagar a crise e que há um preconceito contra eles e que são sempre os mesmos a pagar e blá, blá, blá).
O momento realmente desagradável da minha carreira de - em linguagem contemporânea - precário, aconteceu durante o consulado Sócrates, quando o Governo se lembrou de pedir aos trabalhadores a recibo verde que passassem a contribuir com 29,6% - 29,6%. Não são 11 nem 18 - do seu rendimento para a Segurança Social. Até ali, nada recebia do Estado e quase nada lhe dava; a partir de então e somados aos 21,5% cativados na fonte para impostos, passaria a entregar mensalmente 51,1% de tudo quanto recebesse. Ganhasse 500 ou 5000 euros. Mas continuaria a nada receber.
O PSD, partido em que habitualmente me revejo, nada disse e nem ao Bloco nem ao PC, lá está, ocorreu então falar das conquistas de Abril. Sobraram um ou dois independentes - como Helena Roseta - a pregar no deserto de televisões pouco interessadas no absurdo do "Código Contributivo" (o engenhoso eufemismo encontrado para baptizar o saque), e o PP, no Parlamento, a tentar travar a enormidade.
Mesmo depois de publicada a lei, o PP, pela voz do seu líder, Paulo Portas, continuou a contestá-la, lançando uma petição que reunisse o número suficiente de assinaturas para que o assunto voltasse à Assembleia.
Meses depois, quando Sócrates caiu e a coligação PSD-PP formou Governo, ficámos a saber que seria um centrista, Pedro Mota Soares, a ficar com a tutela da Segurança Social. Respirei de alívio: afinal, o obsceno "Código" tinha os dias contados.
Mas não teve. Passou à prática, como se nada fosse. Como se as palavras e as assinaturas não tivessem qualquer importância. Como se pedir uma contribuição de milionários àquele meio milhão de pessoas que apenas passaram a receber do Estado, e mediante condições especiais, um subsídio de desemprego, tivesse passado a ser a coisa mais normal e justa deste mundo.
É por isso que, agora, quando o Governo pede 18% de contribuição para a Segurança Social aos trabalhadores por conta de outrem e mais 1,1% aos recibos verdes (subindo a sua contribuição para 30,7%) e que o povo sai à rua para pedir justiça social, podem contar comigo para compreender o desagrado e até para achar que Passos Coelho deveria recuar na medida. Mas não para acreditar na bondade dos argumentos de Paulo Portas.