Let them in *
"Esta gente é a garantia de que isto não volta atrás." Por "esta gente" entenda-se os milhares de turcos do que se pode chamar classe média, que num dia feriado se passeiam (eles de braço dado, elas de lenço colorido na cabeça) pela Istiklal Cadesi (Avenida da Independência), a principal rua de peões de Istambul. E por "isto não volta a trás", entenda-se as montras das lojas onde se exibem os corpos provocantes dos anúncios da Diesel, os ténis da Adidas e os livros (de Shakespeare a Paulo Coelho, passando pela enorme produção turca, com destaque - surpresa - para Orhan Pamuk) nos escaparates das mais de dez livrarias que se encontram naquela avenida. Na mesma cidade onde os islamistas ganham eleições. O problema é esse. Esta é mais uma daquelas democracias que pode um dia ser vítima de si própria.
Para lá da mitologia sobre a versão turca de "um país, dois continentes", a verdade é que se a questão for geográfica, a Turquia não cabe na Europa. Acontece que o argumento geográfico é o mais absurdo de todos. É dizer "nós queríamos muito, mas contra a geografia nada podemos". A União Europeia é um projecto político, não é um exercício de restauração geográfica de uma nunca antes existente pureza geográfica europeia. Portanto, a União Europeia será o que quisermos que seja. E o que formos capazes de fazer.
Samir Kassir, um jornalista e cientista político libanês militante de esquerda assassinado em 2005, por forças próximas dos sírios, presume-se, publicou um excelente ensaio com o título "Considerações sobre a desgraça árabe" - ( Livros Cotovia, Lisboa, 2006), onde defende que as principais causas da desgraça árabe são a incapacidade de conviver com um passado glorioso que já não é, e o colonialismo europeu do século passado e o americano deste século, nomeadamente a ocupação territorial por interposto país (Israel). Não cabe aqui uma discussão sobre o assunto, mas há um detalhe que importa referir. A Turquia de Atatürk - país com pouco mais de 80 anos de história - é a excepção à dita "desgraça árabe" - utilizando aqui o termo "árabe" em sentido lato, como Kassir faz. A Turquia de hoje tem uma classe média em crescimento, tem desenvolvimento económico, tem instituições democráticas (ainda que a sua democracia seja frágil e a tutela militar seja um dado a ter em conta, até para a própria preservação da democracia) e tem sido um aliado fiável do Ocidente. Acresce que é uma demografia em expansão, uma economia que capta investimento estrangeiro e continua a ser o que sempre foi: um lugar estratégico.
Como explicou a ministra britânica dos Negócios Estrangeiros, num excelente artigo de opinião publicado no final do ano passado em vários jornais europeus, da segurança à economia, da demografia ao abastecimento energético, a Turquia é parte da reposta a quase todos os principais problemas da Europa. E nós não os queremos cá dentro porque...?